As taças vazias

Lucas Ventura
4 min readAug 15, 2022

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A vida do cidadão ocidental se baseia em acumulação em massa, quanto mais temos, mais queremos. Tudo que está diante dos nossos olhos parece ser a mera realidade. Quando menos esperamos, nos damos conta de que nossa meta de vida tem sido correr atrás de conquistas e objetivos que não nos pertencem. Renunciamos a tanta coisa própria nossa ao longo da jornada e nem percebemos. A autenticidade se perde ao olhar para o outro e vislumbrar quem o outro é e o que ele tem. Nos tornamos o outro do outro, perdemos nosso brio. São nessas horas que precisamos de uma mudança de rota, um tempo de reflexão para analisarmos melhor sobre nossa vida, quem realmente somos e o que de fato nos pertence. A grande ironia é que não imaginamos que necessitamos dessa autoanálise, até sermos forçados a tê-la.

Eu gostaria de fazer referência ao filme Carros, novamente. Meu objetivo não é resenhar sobre o filme, e sim refletir lições aplicáveis a cada um de nós. Como sabemos, o enredo se dá pela narrativa do grande carro de corrida Relâmpago McQueen, o estreante da badalada Piston Cup, e o objetivo do personagem é ser o vencedor da competição, se sagrando o primeiro novato a vencê-la. Ao que tudo indica, ao receber o troféu a vida dele estará completa, encontrará a satisfação plena. Ainda bem que não somos assim com nossos diplomas, cargos e viagens. Ainda bem que é apenas uma animação da Disney. Ufa!

Em tempos de Instagram, somos capazes de desejar coisas que não tem nada a ver com a gente, e depositamos toda nossa força, dedicação e ambição nisso. Vemos a conquista alheia e achamos que aquilo também foi feito para nós. Parece que se eu não fizer a viagem perfeita, não tiver o casamento perfeito, não me vestir com a roupa da moda, não tiver o celular com a última tecnologia, não frequentar os lugares mais chiques etc., não vou validar minha existência. O McQueen almejava a taça da Copa Pistão para dar valor à vida, e você, o que almeja para isso?

Para pensar melhor nisso é muito importante sair dos holofotes e parar numa cidadezinha desconhecida, como Radiator Springs, e deixar com que toda a agitação dê lugar à calmaria caipira. Um momento de conhecer amigos, pessoas simples, contemplar a vista, saborear delícias culinárias da região, se apaixonar. Como diria Chesterton, “Tudo é uma posição da mente, e neste momento estou em uma posição confortável. Vou sentar-me e deixar que as maravilhas e aventuras pousem em mim como moscas. Há muitas delas, garanto.”. Nossa mente tem que estar preparada para enfrentarmos a realidade da vida. É de suma importância que entendamos que conquistar sonhos, comprar o que tanto queremos, ter diplomas e cargos, não é um mal em si mesmo, pelo contrário, é uma benção incrível. Mas não é isso que valida nossa vida, não pode ser isso! A conquista por ela mesma é vazia de significado, o que está por trás disso é que dá o devido tempero.

É nesse momento que o grande personagem Doc Hudson, o fabuloso Hudson Hornet, nos dá uma lição preciosa, em um dos diálogos mais importantes de toda a trama. Uma palavra que o próprio Salomão assinaria. Quando McQueen descobre que o Doc, aquele velho carro da cidade, é o lendário Hudson Hornet, não entende o porquê um carro dessa magnitude está fora de cena, escondido num lugar fora do mapa.

McQueen: É claro, não sei como não me toquei antes, você é o fabuloso Hudson Hornet. Ainda detém o recorde de vitórias por temporada. Ah, vamos conversar, você tem que me ensinar suas manhas.

Doc: Isso eu já tentei.

McQueen: Você ganhou o campeonato três vezes, olha aqueles troféus.

Doc: Olha você. Eu só enxergo um monte de taças vazias.

Na sequência, o Doc explica que as equipes desistiram dele após um grave acidente, considerando que ele não poderia oferecer mais à competição e aos patrocínios. Radiator Springs não foi importante para McQueen porque ele aprendeu a consertar estradas, mas porque ele entendeu o real valor da vida. Ali, ele assimilou que existe peso por detrás das taças. Ele chegou naquela cidade forçado, sem imaginar que precisava tanto daquelas pessoas e daquela experiência para entender a maravilha da existência. Passou de um carro sem amigos, sem chefe de equipe, sem alegria, para um carro com tudo isso e uma mentalidade cativante. Vemos a prova disso em sua grande corrida, quando desistiu da Copa Pistão já na linha de chegada, para ajudar o Rei a completar sua última volta.

Rei: O que está fazendo, rapaz?

McQueen: Acho que o Rei tem que terminar sua última corrida.

Rei: Acabou de desistir da Copa Pistão. Sabia?

McQueen: Ah! Um carro de corrida velho e rabugento me ensinou uma coisa, é só uma taça vazia.

Não imaginamos o quanto precisamos de certos momentos, até passarmos por eles. Nossa vida nunca mais é a mesma. A mudança de rota é necessária quando enxergamos a taça como um fim em si mesmo. Ao trilhar a Rota 66, percebemos que as taças são vazias, se não houver um sentido real que tempere a conquista.

E é isso que o Mestre nos ensina, o oco que há nas taças, é por isso que não precisamos nos preocupar com elas, pois Ele, sendo o verdadeiro vencedor, já nos garantiu a vitória também. Não somos chamados a ser o outro do outro, e nem mesmo o eu que tanto quero. Nosso chamado é para ser aquilo que Cristo nos oferece. O que nos resta é descansar na cidade Dele, e desfrutar das maravilhas oferecidas.

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