Prefácio e saudação

I Pedro 1.1–2

Lucas Ventura
5 min readMar 12, 2022

“Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos eleitos que são forasteiros da Dispersão no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia, eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo, graça e paz vos sejam multiplicadas”

O apóstolo Pedro dedicou uma epístola aos irmãos que se encontravam na comunidade da Ásia Menor. Uma região dominada pelo Império Romano, e um tanto que isolada dos principais portos comerciais da dominação romana, tendo, porém, rotas que ligavam essas cidades ao centro de Roma. Apesar de ser uma região menos populosa, a perseguição do imperador aos cristãos era tão intensa quanto em qualquer outro lugar. Não é à toa que Pedro dirige essa escrita a eles, para animá-los e instruí-los a viver em meio a esse ambiente hostil.

A hostilidade daquela época passava muito por uma perseguição pessoal, física, a ponto de torturar e matar os “ateus” — para os romanos, os cristãos eram tidos como ateus por acreditarem em um único Deus, o que para eles era um absurdo, uma vez que estavam imersos no politeísmo. Mas além da perseguição física, havia também um desafio cultural para os cristãos. Pedro adverte a igreja a se manter de forma exemplar e viver sob a ação do Espírito. Para isso, ele mostra para aqueles irmãos quem eles são perante Deus: eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo.

A eleição apresentada pelo apóstolo aqui pode ser entendida através de duas vertentes: os judeus eleitos, ou a eleição dos gentios mediante Cristo. Para muitos, a eleição ser entendida como direcionada a judeus é muito comum, já que essa é uma linguagem aparente em toda a Bíblia. A contrarresposta de quem acredita que a eleição engloba também os gentios está na própria carta, quando Pedro fala de práticas dos antepassados que são mais características de gentios do que judeus (1Pe 4.3). Vamos assumir a segunda linha de pensamento, tendo em vista a eleição dos gentios.

Temos que considerar, contudo, o que é ser um eleito e como isso impacta a vida de quem recebeu esse chamado de Deus. Para Wayne Grudem,

A eleição é um ato de Deus, antes da criação, no qual ele escolhe algumas pessoas para serem salvas, não por causa de algum mérito antevisto delas, mas somente por causa de sua suprema boa vontade. (Teologia Sistemática, p.560)

É exatamente isso que o apóstolo Pedro quer nos mostrar ao declarar “os eleitos, segundo a presciência de Deus Pai”. A presciência de Deus envolve uma antecipação de qualquer escolha ou atitude humana. Fica claro que isso abre caminho para outras discussões, como o problema do mal (que não é o foco deste texto — ver mais sobre o caráter de Deus em O caráter de Deus manifestado na criação).

O eleito, portanto, segundo a definição de Grudem, diz respeito a um povo separado, exclusivo. Pedro vai denominar esse povo como raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1Pe 2.9). Tendo isso em mente, é possível fazermos algumas considerações importantes quanto a relação do cristão com o mundo em que vive. Uma vez que o crente é chamado para viver uma vida que agrade a Deus, ele tem que considerar uma série de novas atitudes, não pela atitude em si (o que caracteriza o moralismo), mas pela mudança de mente. Pedro segue seu raciocínio dizendo que somos eleitos pela presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e a aspersão do sangue de Jesus Cristo. Com isso, essa eleição se concretiza através da ação santificadora do Espírito, com o objetivo de transformar o cristão a obedecer a Cristo, pelo seu sangue.

O Espírito age na vida do crente de maneira para que este responda em obediência e santificação. O apóstolo Paulo, em sua carta aos Romanos, chama os cristãos a apresentarem o corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, pois este é o culto lógico. Em seguida, Paulo exorta: E não vos amoldeis ao sistema deste mundo, mas sede transformados pela renovação das vossas mentes, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Romanos 12.1–2). Quando Cristo nos chama a viver as obras do Seu Reino, Ele quer que nós deixemos de lado as obras de outrora e vivamos inteiramente para Ele.

O evangelho não é uma nova filosofia, uma metodologia de vida ou um sistema político de ideologias. O evangelho é vida. Jesus não é um simples revolucionário, é o Deus vivo que se encarnou, o Criador que se fez criatura, humilhando-se em figura humana. O chamado ao evangelho não é uma simples mudança de mente, é uma renovação de toda a integralidade do homem, pois Jesus não apresenta uma nova ideia, mas, antes, oferece uma nova vida. Nos tornamos seres divididos, vivendo o “já, e o ainda não”. Já somos salvos, eleitos segundo a benevolência da vontade de Deus, e, assim, vivemos um novo reino, o Reino dos céus. Porém, ainda habitamos no reino caído dominado por Satanás, e enfrentamos os desafios dessa peregrinação. Temos de lidar com as exigências que a vida cristã nos apresenta — viver como cidadãos do céu, numa terra quebrada pelo pecado.

Desta forma, compreendemos que quando Pedro dirige a carta aos peregrinos eleitos, pode haver um duplo sentido. São peregrinos do Reino celestial, ansiando a volta do Rei; assim como pode indicar uma peregrinação de um povo que não faz parte daquela região da Ásia Menor, mas habita ali como dispersos. Uma coisa é certa, todos nós, cristãos, temos esse dilema de viver como estrangeiros em uma terra que já não nos pertence. Paulo, porém, relata que mesmo querendo estar com Cristo na glória, reconhece que tem muito a ser feito aqui na terra (Filipenses 1.23–24). G.K. Chesterton, ensaísta cristão do século XX, resume bem como devemos encontrar esse equilíbrio:

O homem não é um balão que sobe ao céu nem uma toupeira que vive unicamente cavando na terra, mas antes algo semelhante a uma árvore, cujas raízes se alimentam da terra enquanto os ramos mais altos parecem subir quase até às estrelas (CHESTERTON, G. K. In: St. Thomas Aquines, The Dumb Ox. New York: Dover Publications, 2009. p. 107).

A carta direcionada pelo apóstolo Pedro tem o objetivo de exortar os irmãos a não viverem segundo os moldes do paganismo. Na tentativa de encarar a cultura de sua época, os eleitos podem ter a tendência de misturar os pensamentos, ao invés de fazer um contrapeso. O alerta do apóstolo é um alerta que irrompe o cenário do seu tempo, alcançando a igreja do nosso século. Na ânsia de enfrentar as filosofias dominantes na atualidade, podemos facilmente abraçá-las, quando, na verdade, deveríamos lutar contra. Ao olhar para a igreja visível na contemporaneidade, vemos cristãos acolhendo a cultura para dentro da igreja ou realizando a contracultura — influenciando a sociedade de dentro da igreja para fora? Da mesma forma que Pedro lembra os crentes do primeiro século que eles são eleitos, segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Cristo, ele nos lembra também. A igreja brasileira precisa assumir sua postura de eleita.

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